Mário de Andrade
A noite em que alguns rapazes de Diretrizes vieram me convidar para esta colabo-ração, assim que eles saíram, meu pensamento estava bem parado. Por nossasconversas, eu decidira colaborar, mas não era humildade falsa reconhecer que a revistame atacara bem. E a indecisão me angustiava outra vez, uma como que falta de ar...
Distraidamente peguei na minha linda cuia de Santarém e me abanei com ela. Mas vento não vinha e caí em mim: Ah... cuia de Santarém não serve de abano. Naturalmente, de primeiro, os índios estavam precisando de recipientes, repararam nofruto de casca dura, criaram a primeira cuia. Mas era áspera por dentro e facilmenteatacada do bicho. E os índios levaram anos, centenas de anos, com a cuia servindo mal, até que um dia des-cobriram o verniz de cumatê. E a cuia envernizada apresentava agora um bonito polido negro e era objeto duradouro, impossível de bicho atacar.
A cuia servia. Integralmente! Mas um diabo de piaga interessado quis contentar melhor o Curupira escondedor da caça; ou foi um rapagão mais amoroso que como prova de maior habilidade quisren-der depressa a virgem; ou índia malandra que, adormentado o filho, quis matar o tempo, quem foi?... certo é que um dia a cuia aparece com uns rabiscos de cor e uns sulcos que a pedra cortante fizera, destruindo em sua passagem o verniz.
Agora até que o objeto ser-via menos porque os bichos atacavam a cuia pêlos sulcos sem verniz. Mas nunca que o homem largasse mais daqueles enfeites que faziam a cuia, além de útil, bonita. Agora o Curupira se agradava mais da oferta, não só levava o fumo, como a cuia que o guardava. A virgem preferia logo o moço que fazia cuia mais bonita, o rapaz amoroso, o pajé assus-tado. Isso buscavam mais cores, mais desenhos para os sulcos, penavam muito pra de-senvolver a técnica do enfeite, com que fim! Mas com que fim! Se a cuia até servia me-nos!... Não servia menos, servia mais, porque a beleza é também exigência social.
A cuia servia. Integralmente! Mas um diabo de piaga interessado quis contentar melhor o Curupira escondedor da caça; ou foi um rapagão mais amoroso que como prova de maior habilidade quisren-der depressa a virgem; ou índia malandra que, adormentado o filho, quis matar o tempo, quem foi?... certo é que um dia a cuia aparece com uns rabiscos de cor e uns sulcos que a pedra cortante fizera, destruindo em sua passagem o verniz.
Agora até que o objeto ser-via menos porque os bichos atacavam a cuia pêlos sulcos sem verniz. Mas nunca que o homem largasse mais daqueles enfeites que faziam a cuia, além de útil, bonita. Agora o Curupira se agradava mais da oferta, não só levava o fumo, como a cuia que o guardava. A virgem preferia logo o moço que fazia cuia mais bonita, o rapaz amoroso, o pajé assus-tado. Isso buscavam mais cores, mais desenhos para os sulcos, penavam muito pra de-senvolver a técnica do enfeite, com que fim! Mas com que fim! Se a cuia até servia me-nos!... Não servia menos, servia mais, porque a beleza é também exigência social.
Foi perigoso o dia em que um fazedor de cuias apareceu todo lampeiro, porque fi-zera a cuia mais bonita de todas. Enfeitadíssima, tinha penduricalhos ejoujoux, e além dos sulcos, era perfurada em recortes sinuosos por onde se via o verde do mato e se escutava as águas gementes. Mas todos se afastaram do artífice com grandes risadas porque a cuia não servia mais.
Então os chefes chamaram o artífice e lhe pespegaram um enorme pito: - Você fez foi besteira, fazedor! Nem tanto nem tão pouco! Assim a cuia não serve mais! Você só pensou em si, nos esqueceu! Em vez dessa coisa inútil, antes você cuidasse da segu-rança do traço, desenvolvesse a verdadeira técnica das cuias. Olhe este sulco: a faca es-capoliu e o risco avançou muito. Você quis gravar a palavra 'pareci' que significa 'mano', 'amigo', mas trocou as vogais e escreveu 'poracê' que significa 'festança', ficouuma pala-vra em falso, não se vive só de festa não! Vá embora fazedor! - E o fazedor foi esquecido.
Pois dessas tradições complexamente humanas deriva a cuia de Santarém. A cuia serve para infinitas, materiais e simbólicas coisas. Na cuia se guarda o acassá como se esconde um pedacinho do escrito alheio que prejudicava o nosso ataque. E pela posse-desta linda cuia de Santarém, os que me buscam sentem mais prazer de estar aqui, e mais espertada a tendência a solidarizar comigo. E nada, nunca mais impedirá que para as gentes do Rio de Janeiro ou de Boston, que já têm recipientes mais lógicos e duráveis, entre uma cuia feia e outra linda, a linda seja a preferida, a conservada, a mais capaz de despertar a comoção, a convicção, a solidariedade.
Nos museus o sociólogo observará também as cuias sem enfeite e as mal enfeita-das. Daquelas verificará talvez um estádio mais primário de civilização. E das mal enfeitadas denunciará a decadência de uma mentalidade coletiva. Porque arte é coisa social; e se um indivíduo, com as ideias confusas por ignorância ou preguiça de pensar, enfeita mal suas cuias sob pretexto de pressa ou utiltarismo, a sua imperfeição se reflete na coletividade, atua aos poucos sobre ela, a maltrata, a descaminha, a conspurca e sangra. E a coletividade se enfraquece por isso e decai.
Nas vitrinas dos museus o lugar melhor será para a cuia mais linda. Mais lindapor-que mais perfeita... A beleza das criações humanas (e até das naturais...) deriva da sua perfeição. Até da perfeição prática, pela qual o objeto serve. E toda a população do Rioou de Boston deixará de ver as cuias mal enfeitadas, para só contemplar a cuia linda e lhe sentir a influência. Os colecionadores se disputarão a cuia linda. As civilizações e naciona-lidades só se orgulharão da cuia linda. Só esta será bem cuidada, bem guardada, bem defendida do tempo e viverá eternamente. É que só ela, na verdade, é representativa do Homem. Porque não representa o Homem, nem a curvatura decadente da velhice, nem a puerilidade primária da infância. Mas a ereção do corpo viril.
Não. A minha cuia de Santarém servirá pra muitas coisas. Até pra abano ruim. Mas eu não a trocaria pelo melhor dos abanos, mesmo nesta hora indecisa em que o ar me falta. Hei de guardar contra tudo e todos a minha linda cuia de Santarém.
Fonte: In: Suplemento Literário de Diretrizes, Rio de Janeiro, Ano 2, n° 20, nov. 1939. (Série Matérias extraídas de periódicos, Arquivo Mário de Andrade, IEB/USP). Transcrição de Flávia Camargo Toni